Crítica | RENAISSANCE - Beyoncé


A pista de dança é um templo.

Sempre foi, e sempre será. Em seu sétimo álbum de estúdio, Beyoncé toma conta dela, prestando homenagem ao lugar que não apenas une diferentes culturas, ritmos e energias, mas também foi historicamente um dos portos seguros da comunidade negra e queer. Dos anos 90 aos anos 70, as influências aqui se misturam com o novo de forma pontiaguda, tudo é reluzente, e Beyoncé brilha no centro da pista.

É possível dividir a carreira de Beyoncé em três fases bem perceptíveis: o início e a era Destiny's Child; a ascensão ao estrelato solo ao longo da década de 2000; e a coroação como uma das rainhas da música a partir dos anos 2010.

No reinado recente, parece que cada passo dela é calculado. De "4" para frente, cada disco apresentava uma versão mais complexa, madura e intrigante de sua persona. O apogeu pessoal disso foi o autobiográfico “Beyoncé” de 2013, e o político foi o álbum "Lemonade", de 2016, que marcou sua discografia como o momento em que sua força artística e sua força política finalmente davam as mãos, o momento em que Beyoncé não era mais apenas uma artista posicionada politicamente, mas uma artista ativista.

Naturalmente, criar o sucessor de "Lemonade" não seria tarefa fácil. Ainda mais quando uma pandemia se impôs em meio ao processo.

As expectativas para esse disco eram muito altas, e Beyoncé as atendeu, entregando não o que os fãs queriam, mas o que precisavam. Após anos intensos, densos e pesados, nós precisávamos nos divertir, nos reaproximar dos outros e de nós mesmos, sentir o toque, o groove e o ritmo. Esse álbum preenche uma necessidade latente, que, após um isolamento tão longo, estava praticamente em coma.

No entanto, não seria possível, nem desejável, que esse fosse um disco "pão e circo" que retrocedesse nas pautas tão importantes que Beyoncé vem levantando ao longo dos últimos anos - e ele não é. Ela consegue inserir as pautas sociais e políticas pelas quais vem lutando dentro desse contexto de forma muito habilidosa.

Talvez o aspecto mais interessante dessa relação entre arte e ativismo resida, especialmente, na estética do álbum. Aqui, Beyoncé não precisa abordar tudo o que acredita nas letras, pois a produção, os timbres, a percussão, os samples, tudo o que compõe essas músicas carrega homenagem, influência e compõe um show de história musical negra. Acima de tudo, é feito PARA essas pessoas, sem jamais utilizar a estética como mero artifício mercadológico.

Além disso, é interessante mencionar a ausência de visuais. Em uma era onde todo artista também é ator, diretor, criador de conteúdo, empresário e influenciador, entende de maquiagem, shampoo e televisões (como não lembrar de Kanye West falando sobre Lady Gaga e a Polaroid em 2013), Beyoncé opta por ser "apenas uma musicista". Isso nos leva de volta à fase da coroação na qual ela se encontra: ela não precisa mais atender aos desejos e requisitos de uma indústria que suga os artistas até a alma, ela pode se dar ao luxo de "apenas fazer um álbum". A turnê RENAISSANCE WORLD TOUR estava esgotada em poucas horas, mesmo sem o álbum possuir sequer um clipe.

A razão pela qual Beyoncé pode se dar a esse luxo é a competência em seu trabalho. Se hoje ela é uma rainha da música, foi pela construção que ela fez ao longo de sua discografia.

Vivemos tempos duros para se fazer arte, não há fandom fiel suficiente para defender e consumir um álbum genuinamente ruim. Felizmente, Beyoncé torna fácil ser fã. A cada trabalho, ela reafirma sua posição de quase super-heroína na indústria, gerenciando uma equipe criativa que, com sua voz comandando a obra, coloca nas ruas, há mais de 10 anos, obras imaculadas.

Um ano atrás, quando ouvi o álbum pela primeira vez, lembro de pensar que a abertura "I'M THAT GIRL" não fazia jus ao resto do disco. Hoje, me afeiçoei à faixa e entendo seu objetivo: uma introdução à atmosfera do álbum, sutil e densa, nos preparando para a sequência de bangers sem intervalo que virá a seguir. O disco infusionado com drum & bass de "COZY"; a infecciosa e viciante "ALIEN SUPERSTAR", um dos melhores singles da carreira de Beyoncé; o R&B explicitamente irresistível de "CUFF IT", seguido de "ENERGY" e "BREAK MY SOUL". Esta última, uma faixa que já era um bom single, mas que dentro do contexto do álbum ganha muito mais força, pelo seu posicionamento central na tracklist e sua alta energia.

“Look what it’s done to the culture. Look how the energy of the world moved. They play her whole album in the club. I don’t know if I’ve ever seen that,”
— Jay-Z, comentando o absurdo que é "Renaissance" ter perdido o grammy de álbum do ano para o medíocre "Harry's House"

Prestar atenção na mudança de BPM das músicas explica muito sobre o funcionamento de RENAISSANCE. O tempo diminui e acelera de forma gradual e muito bem pensada, e não é à toa que DJs estão tocando o disco na íntegra em baladas mundo afora. Após "BREAK MY SOUL", temos a tríade "CHURCH GIRL", "VIRGOS GROOVE" e "PLASTIC OFF THE SOFA", três faixas com clima um pouco mais chill, um respirar fundo no meio do álbum para que a energia possa ser retomada mais tarde. O destaque fica com "VIRGOS GROOVE", uma faixa que poderia facilmente durar 30 minutos e ninguém iria reclamar. Se existisse um país chamado VIRGO’S GROOVE, o pessoal da imigração estaria sofrendo para lidar com todos os pedidos de migração para lá - não há como não querer morar nessa faixa. The Dream fazendo o que sabe fazer de melhor.

De "MOVE" em diante, a energia volta a subir, atingindo novos picos em "AMERICA HAS A PROBLEM" e "SUMMER RENAISSANCE", que interpola "I Feel Love", de Donna Summer, tão bem como ninguém fazia desde Madonna em 2007 com "Future Lovers". Não existem pontos baixos no disco, apenas faixas menos brilhantes. E, novamente, o conceito da pista de dança é tão bem executado que, por mais que as músicas possam ser ótimas por conta própria, ouvi-las em ordem (especialmente à noite, dançando) é uma experiência imbatível.

Tudo que RENAISSANCE se propõe a fazer, ele faz com maestria. Dance, house, disco, pop, R&B, tudo isso se reúne nesta pista de dança que ostenta timbres meticulosamente desenhados e escolhidos para tornar a experiência da pista de dança de Beyoncé irresistível. Chega a ser estranho pensar que após seis álbuns solo, ela nunca tinha adentrado a seara dance com tamanho foco. Mas se esse era o tempo que ela precisava para entregar algo a essa altura, a espera valeu a pena. Não há baladas aqui, o BPM é alto do início ao fim, e, por mais que uma grande parte das músicas funcione incrivelmente bem isoladamente, nada supera a audição completa desse disco.

O jogo de significados desse disco não poderia ser melhor amarrado pela ambiguidade do próprio título. Renaissance, em inglês, pode ser usado tanto para renascimento quanto para Renascença, período da história da arte. Ao nos entregar mais um renascimento em sua carreira, Beyoncé nos convida para a pista, para que nós possamos renascer com ela, após um período coletivamente traumático. E esse renascimento coletivo, coreografado por uma artista que representa, mundialmente, a força, o talento e a grandiosidade da cultura negra, é a renascença que a artista propõe, antagônica àquela que a didática eurocentrista e branca promove há séculos.

RENAISSANCE é a renascença moderna de Beyoncé. Preta e diversa. Confiante, sensual, sensorial, sem abrir mão de grandeza estética. Não é apenas a renascença que queremos, mas é a renascença que precisamos.

Não sei se realmente haverá um ato 2 ou 3 de RENAISSANCE, não sei se Beyoncé continuará gerindo álbuns que sejam grandes projetos como esse ou se voltará para uma estética mais minimalista. No entanto, é um prazer e um privilégio poder testemunhar e experimentar o trabalho dessa artista.

Plenamente ciente de sua força, Beyoncé está usando seus poderes, novamente, para o bem.

9,2

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