Crítica | Pobres Criaturas

Pobres fábulas escatológicas

Lanthimos passou tempo demais no seu novo mundo e é hora de voltar para casa.

“Pobres Criaturas” era um dos filmes mais esperados da temporada, a estreia premiada em Veneza somada com um pesado marketing que envolveu as estrelas do elenco com a figura do diretor em eventos e redes sociais o colocou no radar de todos que acompanham cinema. Deve ser por isso que o filme que assisti no cinema lembra mais uma série de esquetes feitas para viralizar nas redes sociais que o cinema sólido de outros trabalhos de Lanthimos.

Emma Stone é uma mulher com a ingenuidade e o cérebro de uma criança, ela vive em uma casa fantástica cercada por animais incríveis, mas esse mundo é na verdade uma prisão e seu carcereiro, um monstro. Até que um dia um homem rico, corajoso e ótimo amante escala a torre da sua prisão e a liberta para viverem juntos um mundo de aventuras. O mundo de fora da sua prisão é cheio de prazeres (sexo, açúcar e violência), Lisboa desenhada por algumas crianças muito criativas é mágica e fantasiosa onde os bondes voam sobre as cabeças das pessoas e o horizonte vai ao infinito em todas cores possíveis.

Esse aspecto fabulesco do primeiro ato, a rapunzel encarcerada por amor pelo seu criador, perde a graça quase instantaneamente. O uso das grande angulares que Lanthimos tanto preza enquadram em todas extremidades da tela as paredes que a aprisionam e o seu mundo é construído entre grades (todas escadas do filme têm corrimãos gradeados). E a câmera sempre repete em Stone o que faz com Dafoe, se dá um zoom-out nele a seguir vemos nela também e assim por diante. Apesar disso, esse monstro assexuado que se chama God e se vê como o próprio é incapaz, como em toda fábula, de manter sua princesa presa no mundo preto e branco e assim ela finalmente vai ver as cores.

Claro, uma fábula na perspectiva de Lanthimos só poderia ser escatológica. O mundo que ele costuma nos convidar de controle, sujeira e crueldade que explora o lado animal da decadência dos seres humanos e faz isso mostrando não só o prazer, mas a super valorização da vontade de sentir prazer. Na verdade, mostrando é um exagero meu, ele nos conta isso. Os personagens têm longas rodadas de filosofia de buteco sobre a vida, as teorias políticas do século 19, e a personagem de Emma Stone passa seu período de descobertas querendo refletir sobre essas possibilidades racionalmente para decidir o que é certo e o que é errado (é uma fábula no fim das contas).

Yorgos Lanthimos se coloca como o próprio monstro/deus interpretado por Dafoe. Quanto mais longe Stone está da sua casa, menos grandes angulares e cores saturadas vemos. Ele é o carcereiro da personagem também, e a ideia na passagem do segundo pro terceiro ato é que ela se liberte inclusive da câmera, ele se recusa a filmar isso definitivamente, e quando parece que a libertação daquela história finalmente acontece, ela aparece em uma fisheye, presa por outro homem, muito sutil.

O diretor grego parece ter perdido o instinto que o levou a Hollywood. Na cena do primeiro ato que vemos o suicídio da protagonista, por exemplo, ele alterna entre uns 4 ou 5 planos (um por trás, um por cima, um pelo lado, mais um por cima) que são injustificáveis, repetitivos, sem ritmo, como se um pianista no meio de uma apresentação tocasse a mesma nota fora de ritmo por 1 minuto no meio de uma música. Seus atores não são mais aqueles corpos fora da órbita do mundo de Lanthimos que ou tangeciam suas ideias ou tentam fugir delas. São atuações ultra hollywoodianas, fora do tom fantástico, que gritam e batem a cabeça na parede quando estão brabos e sorriem quando estão felizes, não há nada do exagero que ele tenta impor com sua câmera no jeito que atuam. Talvez o único que se salve seja o Mark Ruffalo, o que é algo bem preocupante.

Quando Lanthimos saiu do seu país onde era consagrado e cercado por outros diretores fantasiosos para descobrir Hollywood com certeza ele viveu aventuras que o fizeram conhecer outras visões de cinema, mas como faz a personagem de Emma Stone no terceiro ato: é hora de voltar para casa. Aquilo que eram suas marcas como diretor viraram gimmicks, já não há mais sentido no mundo de hoje, no cinema de hoje ele filmar da mesma maneira. “Pobres Criaturas” incomoda porque é viciado em práticas de Hollywood, é redundante, auto explicativo, não se compromete com os temas que quer debater e lembra mais “Barbie” do que o cinema de festival europeu que Lanthimos acredita que está fazendo.

Em síntese, um filme tão preocupado em defender a experimentação do mundo, a leitura do prazer como algo primeiro a se sentir e depois a se pensar e a tomada de consciência a partir da vivência parece oco de uma perspectiva honesta sobre o mundo. “Pobres Criaturas” se passa no século 19, faz referências ao cinema dos anos 30, mas está preso nos festivais dos anos 2010. Ele fala de socialismo, de feminismo, de anarquismo, de niilismo, de liberalismo mas ele não faz nada sobre isso, Lanthimos apenas enfeita a sua (e a nossa, e a de Emma Stone) prisão com velhos truques de câmera.

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