Crítica | Céu - Novela

Cantora apresenta um som elegante (e artesanal) no melhor álbum de sua carreira até agora.

Poucas artistas femininas da ‘’Nova MPB’’ conseguiram fazer uma transição tão bem-sucedida da era do disco físico para o streaming como Céu. Não apenas em termos de números, mas também na substância poética dos trabalhos musicais apresentados. Em seu mais recente lançamento, "Novela" (2024), a artista nos convida a um passeio pela sua pesquisa musical, acompanhada do produtor norte-americano Adrian Younge (conhecido por colaborações do quilate de Wu Tang Clan e Kendrick Lamar), somado ao brasileiro Pupillo (também creditado em "Tropix" e "APKÁ!" da cantora).

Na faixa de abertura, "Raiou", Céu compartilha os vocais com Ladybug Mecca, artista norte-americana de ascendência brasileira. E essa menção à nacionalidade do ‘’feat’’ não é por acaso. Desde os primeiros acordes do seu 6º álbum de inéditas, percebemos que a artista paulistana une dois pontos de referência em seu som: o retro-soul do hemisfério norte ao mais ‘’caliente’’ do que a nossa música nacional tem produzido nos últimos anos – um movimento que a própria artista ajuda a manter de pé.

O groove permanece lá em cima em ‘’Cremosa’’. Com um arranjo instrumental afiado e uma letra cheia de pecado (no bom dizer), a artista mostra que sua latinidade está mais forte do que nunca: ‘’Um espumante à vela acesa / Puritanismo e safadeza / Isso se evidentemente / Você me tratar mais que bem’’. 

"Gerando na alta", single lançado um mês antes do álbum, traz os vocais da franco-senegalesa anaiis em um duo que reafirma essa marca registrada da brasileira em seus discos de cantar em duas línguas. Na canção, as duas cantoras entoam sobre uma amizade calorosa, embaladas pela percussão de Pupillo.

‘’Crushinho’’ traz uma Maria do Céu apaixonada por alguém que aparentemente não corresponde ao seu sentimento, algo que remete às características líricas da cantora em seu primeiro álbum, de 2005. Já a faixa-título traz o mais interessante do ‘’cool jazz’’, onde novamente a artista bota o inglês pra jogo sem abrir mão do sotaque brasileiro, o que torna tudo mais interessante. A presença dos vocais de Loren Oden, parceiro de longa data de Adrian Younge, deixa a interpretação da canção ainda mais arrebatadora.

'’Mucho Orô'’ inicia com um instrumental cadenciado, marcado pela bateria com intervalos suaves, enquanto Céu aparece em vocais baixos ao mesmo tempo que faz sua segunda voz em um coro que discorre sobre vaidade e paixão. Lá pela metade da canção, a coisa muda e a bateria ganha força, assim como a voz da cantora. Um adendo: o início dessa canção de Céu me lembra ‘'Crazy Love’', presente no excelente disco de 1970 de Van Morrison.

"High na Cachu" é uma ode ao viver bucólico em um arranjo caribenho marcado pela percussão enérgica ao fundo, em uma dobradinha com uma orquestra de apoio: ‘’Dança do vento em silêncio / Me conta o porquê / Que a pele do rio está toda arrepiada / Água tão doce gelada me faz renascer’’.

Pupillo aparece ao lado de Céu com seus bongos eletrônicos em "Buá Buá", enquanto a faixa seguinte, "Vinheta Dorival II", nos lembra Caymmi com um assobio estridente no andamento da faixa, que serve como interlúdio inteligente para "Lustrando Estrela". 

‘’Corpo e Colo’’ (única canção que Céu não participa na composição, sendo da dupla Kleber Lucas e Nando Reis) e ‘’Reescreve’’ fecham o disco da mesma forma que inicia, no sentido de colocar o ouvinte com a autoestima lá em cima por cima de versos que cantarolam sobre fé e transformação física. Lembro aqui que as sessões de gravação foram realizadas inteiramente no estúdio de Younge, em Los Angeles, de uma maneira pouco convencional para os padrões contemporâneos: sem o auxílio de computadores avançados, aderindo à filosofia do "quem sabe faz ao vivo". 

Céu dificilmente erra em suas escolhas musicais. Seu novo trabalho, composto por 12 canções originais, traz um repertório acurado, com canções multitemáticas, não devendo nada para um folhetim televisivo. Apesar de cantar em inglês e português, a cantora-compositora não abre mão de suas raízes brasileiras, algo que muitos artistas do nosso país têm negligenciado ao buscar sucesso internacional.

Novela nasce como um magnum opus da discografia da artista, quiçá da música contemporânea dos últimos anos. É uma obra catártica na dose certa, algo que somente uma artista de sua grandeza poderia fazer. É arte pura. Céu na sua melhor fase.

9



Caio Profiro

Manauara. Penso e escrevo sobre música desde 2021. Beatmaker nas horas vagas e pesquisador musical em tempo integral. Autor do artigo científico "O samba como território da folkcomunicação: a trajetória do genêro musical de cultura marginal a símbolo nacional".

https://m.soundcloud.com/profiro
Anterior
Anterior

Crítica | Amores Expressos

Próximo
Próximo

Os 25 Melhores Álbuns de 2023